Silvia Losacco*
A preocupação com o grande número de bebês encontrados mortos durante a
Idade Média, fez com que uma Irmandade de Caridade organizasse em um
hospital em Roma um sistema de proteção à criança. Denominado "roda dos
expostos" ou "roda dos enjeitados", este artefato de madeira era fixado
no muro ou na janela do hospital aonde a criança recém-nascida,
enjeitada ou fruto de uma relação inconveniente, era depositada. Ao
girar o artefato o bebê era conduzido para dentro das dependências da
irmandade, sem que a identidade de quem ali o colocasse fosse revelada.
Estes "filhos de ninguém" eram, muitas vezes, fruto de relações
proibidas, filhos de moças pobres, ou mesmo crianças encontradas por
eremitas que as recolhiam e as educavam até as colocarem na "roda". Por
vezes as mães dos enjeitados deixavam alguns objetos identificáveis
(fitinhas, pequenos bordados com monogramas, medalhinhas), a fim de, um
dia mais tarde, as poderem identificar e recuperar. Quando atingiam a
idade de aprendizagem, as crianças eram transferidas para a Casa Pia,
uma instituição de acolhimento que as educava e preparava para a vida
adulta.
As primeiras iniciativas de atendimento às crianças abandonadas no
Brasil se deram, seguindo a tradição portuguesa, com a instalação da
roda dos expostos nas Santas Casas de Misericórdia. Em princípio três:
Salvador (1726), Rio de Janeiro (1738), Recife (1789) e ainda em São
Paulo (1825), já no início do império. Outras rodas menores foram
surgindo em outras cidades após este período.
Mais tarde no Brasil, já com a promulgação do 1º Código de Menores,
as famílias destituídas de poder financeiro para a criação de sua prole
tinham como ajuda do Estado a "internação" de seus filhos, tidos como
órfãos ou abandonados.
A alteração legal da nomenclatura internação para abrigamento não
levou à mudança de cultura daqueles que são os responsáveis legais por
esse procedimento. O recolhimento de crianças em situação de rua já foi o
principal instrumento de assistência à infância no Brasil.
A pesquisa realizada em 2004 pelo IPEA - Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada, seguindo as orientações do Comitê de Reordenamento
da Rede Nacional de Abrigos para a Infância e Adolescência, demonstrou
que a pobreza foi o motivo mais citado (24,2%) como causa para a
institucionalização, contrariando o Estatuto da Criança e do Adolescente
(1990) que estabelece a obrigatoriedade de inclusão da família em
programas oficiais de auxílio quando pais ou responsáveis não conseguem
cumprir com suas obrigações de proteção aos filhos por motivos de
carência material.
Desafios
Todos os esforços governamentais ainda têm sido insuficientes para a
divulgação, apropriação dos saberes, planejamentos e implantação de
ações que efetivamente garantam os direitos de crianças e de
adolescentes à boa convivência familiar e comunitária. Dentre outras
ações de grande relevância, as iniciativas de programas como o de
Família Acolhedora e os instrumentais legais como o Cadastro Único de
Adoção e as Audiências Concentradas ainda não têm contribuído para a
reversão da cultura vigente. Tampouco, as violências sexuais, físicas e
psíquicas sofridas indistintamente por ambos os sexo, inclusive por
aqueles que pertencentes às classes sociais mais abastadas, tem sido
pauta de debates, de pesquisas e, até, da mídia.
Dentre vários desafios, dois chamam a atenção para o imediato
enfrentamento: o reordenamento das instituições de acolhimento e a
qualificação dos profissionais de atendimento à família e,
conseqüentemente, à criança e ao adolescente em situação de
vulnerabilidade pessoal e/ou social, em todas as áreas de atuação:
segurança pública, conselho tutelar, justiça, assistência, etc.
Independente da qualificação formal de cada profissional, deverá
compor, enquanto princípio valorativo, os momentos do atendimento: a
qualidade do acolhimento, o respeito, a disponibilidade de escuta, a
credibilidade dos relatos e, principalmente, a consideração pela dor
vivida decorrente de um determinado episódio ou da trajetória de vida do
adulto responsável e/ou da criança e do adolescente em questão.
Se, por um lado, o reordenamento institucional requer a elaboração e a
implementação de um Plano Político-Pedagógico Institucional (PPPI); por
outro lado, a formação profissional requer nova proposta.
O PPPI é um instrumental que traz em si uma visão de sociedade, de
cidadania e de atitudes; “(...) instrumento de trabalho que mostra o que
vai ser feito, quando, de que maneira, por quem, para chegar a que
resultados. Explicita uma filosofia e harmoniza as diretrizes (...) com a
realidade da instituição traduzindo sua autonomia e definindo seu
compromisso (...)” (VEIGA, 2003a: 110).
Sua construção implica tomada de decisões, definição de
intencionalidades e perfis profissionais, análise das condições reais e
objetivas de trabalho, otimização de recursos humanos, físicos e
financeiros, além de coordenar os esforços em direção a objetivos e
compromissos futuros. Requer flexibilidade e autonomia na sua elaboração
para que lhe seja conferida a sua legitimidade. É um processo que tem,
em sua incompletude, a necessidade constante de avaliação que o
impulsiona a superações.
Para manter-se vigente, precisa superar o caráter de um documento
formal e constituir-se em mecanismo vivo de desenvolvimento e avaliação
interativa permanente de seus princípios pela comunidade.
A instituição que o opera, a par das múltiplas contradições postas na
sociedade atual, precisa situar-se de modo crítico e dialético,
dialogando efetivamente com todos os setores da sociedade, a partir de
um contexto local, incluído na problemática nacional, que, por sua vez,
determina e é determinante de uma conjuntura global, de um lado,
contribuindo para o desenvolvimento teórico-metodológico e, de outro,
servindo a uma concepção radical e universal de cidadania.
É uma proposta de ação político-institucional e não um artefato
técnico. Constitui o conjunto de diretrizes mais abrangentes que
expressa a identidade da instituição, não sendo somente uma carta de
intenções, tampouco uma exigência de ordem administrativa. Enquanto
instrumento técnico-metodológico, visa ajudar os desafios do cotidiano
de uma forma refletida, consciente, sistematizada e participativa.
Sua operacionalização é uma construção em processo permanente, pois
tem como características: ser um processo participativo de decisões;
preocupa-se em instaurar uma forma de organização de trabalho que
desvele os conflitos e as contradições; deve explicitar princípios
baseados na autonomia, na solidariedade e no estímulo participativo de
todos no projeto comum e coletivo; conter opiniões de todos na direção
de superar problemas no decorrer do trabalho; explicitar o compromisso
com a formação do cidadão.
Tanto para a sua elaboração, quanto para a sua operacionalização e
avaliação, há a necessidade do envolvimento dos atores como componentes
individuais, do apoio institucional e das garantias legais postas no
cenário nacional. É um documento legal e político que define a
identidade e a missão da instituição, construído a partir de um elenco
de valores de mundo dos atores que são encarregados por executá-lo.
Seus conjuntos de preposições definem: seus princípios, o
funcionamento institucional, metas, prioridades, referências para o
trabalho, e proposições. Explicita a visão do conjunto institucional
numa perspectiva de futuro e de futuro próximo. Exprime as condições de
trabalho, a natureza das relações hierárquicas e das estruturas
organizacionais, os sistemas de avaliação e de controle dos resultados;
as políticas de gestão com pessoas, as estruturas, fundamentos, e
práticas dos projetos particulares que compõem o todo.
Diversificadas e complexas deverão ser as formações daqueles que, desde o primeiro momento, atendem ao público em tela. A qualificação está atrelada às possibilidades de cada um dos profissionais; porém, também requer vontade política para a difusão dos saberes e instrumentais já construídos e uma reestruturação curricular para o nível superior de ensino atrelada à ousadia da elaboração de novas grades disciplinares e cursos que favoreçam a formação de profissionais com as competências necessárias para os enfrentamentos das diversidades das violências sofridas por crianças e adolescentes.
Nesse sentido, os saberes poderão, e deverão, ser colocados em prática por meio de ações articuladas que nos permitam rever as políticas institucionais, repensá-las e, se for o caso, reconstruí-las com o objetivo de alcançar um bem que tenha a dimensão do coletivo. Ações que nos possibilitam ver e intervir no tecido social, tecido que ao ser “aberto” revela suas tramas, seus nós, seus vazios. Ações que edificam uma sociedade que realmente tenha a criança e o adolescente como prioridade absoluta na promoção, na garantia e na defesa de todo e qualquer direito!
Diversificadas e complexas deverão ser as formações daqueles que, desde o primeiro momento, atendem ao público em tela. A qualificação está atrelada às possibilidades de cada um dos profissionais; porém, também requer vontade política para a difusão dos saberes e instrumentais já construídos e uma reestruturação curricular para o nível superior de ensino atrelada à ousadia da elaboração de novas grades disciplinares e cursos que favoreçam a formação de profissionais com as competências necessárias para os enfrentamentos das diversidades das violências sofridas por crianças e adolescentes.
Nesse sentido, os saberes poderão, e deverão, ser colocados em prática por meio de ações articuladas que nos permitam rever as políticas institucionais, repensá-las e, se for o caso, reconstruí-las com o objetivo de alcançar um bem que tenha a dimensão do coletivo. Ações que nos possibilitam ver e intervir no tecido social, tecido que ao ser “aberto” revela suas tramas, seus nós, seus vazios. Ações que edificam uma sociedade que realmente tenha a criança e o adolescente como prioridade absoluta na promoção, na garantia e na defesa de todo e qualquer direito!
*Psicóloga psicodramatista, mestre em Artes Cênicas pela
Universidade de São Paulo (1990) e doutorada em Serviço Social pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2004). Atua na área das
políticas sociais e públicas para crianças, adolescentes, famílias e
comunidade na formulação, coordenação, implantação, acompanhamento e
avaliação de projetos, programas e políticas; e, na formação de
profissionais que atuam na garantia dos direitos da criança e do
adolescente. Dentre outros projetos para organismos internacionais e
nacionais, foi consultora da SNPDCA - Secretaria Nacional de Promoção
dos Direitos da Criança e o Adolescente e UNFPA para a elaboração do
Relatório da Convenção dos Direitos da Criança da Organização das Nações
Unidas. Foi Pesquisadora convidada do Programa de Estudos Pós-graduados
em Serviço Social da PUC-SP para a Cocoordenação do Núcleo de Estudos e
Pesquisas sobre a Criança e o Adolescente, de 2003 a 2009. Atualmente é
coordenadora geral do Projeto "Convivência Familiar e Comunitária de
Crianças e Adolescentes: Direitos Humanos e Justiça", financiado pela
SDH/Conanda, com parceria da ABMP.
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