Cátia Guimarães e Raquel Júnia
Escola Politécnica de Saúde Joaquim
Venâncio – FioCruz
Adital
Programa do governo federal aposta
no incremento de estruturas para
tratamento aos usuários da droga e mantém possibilidade de convênio com
as
polêmicas comunidades terapêuticas. Mas quais deve ser as bases para o
cuidado
aos usuários de drogas?
Nos últimos
meses, o crack ocupou as páginas dos principais jornais do país, assim
como as
notícias das ações, algumas bastante polêmicas, realizadas pelos
governantes
para combater o uso da droga, como a internação compulsória de usuários
do
crack e as ações policiais nas chamadas ‘cracolândias'. Com os holofotes
da
imprensa sobre o assunto, no final de 2012, o Ministério da Saúde lançou
o Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e Outras
Drogas, com o
slogan 'Crack, é Possível Vencer'. Bem antes do lançamento do plano, já
no
discurso de posse, a presidente Dilma prometeu que esta seria uma das
prioridades de sua gestão. O 'Crack, é Possível Vencer' prevê medidas em
três
eixos de atuação - cuidado, autoridade e prevenção - e mantém a
possibilidade
de convênio com as chamadas comunidades terapêuticas, um dos pontos mais
criticados do programa.
Segundo o Ministério da Saúde (MS), o plano investirá R$ 4 bilhões no
"enfrentamento" à droga. No eixo cuidado, está prevista a
reformulação da 'Rede Conte com a Gente', que inclui estruturas já
existentes e
outras novas para atender aos usuários, como as enfermarias
especializadas
dentro de hospitais públicos. Também serão criadas Unidades de
Acolhimento,
que, segundo o MS, funcionarão como moradias temporárias nas quais os
usuários
de crack receberão cuidados clínicos. Além disso, serão potencializados
os já
existentes 'consultórios de rua' - equipes multiprofissionais que
abordam
usuários de drogas nos locais de consumo - e os Centros de Atenção
Psicossocial
especializados em usuários de Álcool e Drogas (Caps AD). De acordo com o
Ministério da Saúde, as comunidades terapêuticas, coordenadas por
entidades sem
fins lucrativos, também poderão fazer parte da 'Rede Conte com a Gente'.
O reconhecimento dessas instituições como possíveis espaços de
tratamento aos usuários de crack foi o que gerou mais críticas ao plano.
O
papel de recuperação e cuidado que as chamadas comunidades terapêuticas e
outras instituições de internação cumprem para os usuários não apenas de
crack,
mas também de outras drogas, é bastante controverso. Pouco antes do
lançamento
oficial do programa, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) entregou ao
Ministério da Saúde o Relatório da 4ª Inspeção Nacional de Direitos Humanos: locais de
internação para
usuários de drogas contendo várias denúncias de irregularidades
encontradas pelo Conselho
em alguns desses espaços, como utilização de mão de obra não remunerada,
preconceito por orientação sexual e religiosa, violação de privacidade,
torturas psicológicas, falta de acesso a atendimento médico e à rede de
educação. A Comissão de Direitos Humanos do CFP inspecionou 68 unidades
em 24
estados e no Distrito Federal. O relatório foi entregue ao Ministério da
Saúde
e ao Ministério Público, e também apresentado na 14ª Conferência
Nacional de
Saúde, que aprovou uma moção de repúdio ao financiamento do governo
federal à
comunidades terapêuticas. Por meio de sua assessoria de imprensa, o
Ministério
da Saúde confirmou que o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, recebeu o
relatório em audiência com representantes do CFP. Questionado sobre que
providências foram tomadas em relação às denúncias, o Ministério
reforçou que
as instituições denunciadas no relatório não recebem recursos do Sistema
Único
de Saúde (SUS) e respondeu apenas que "quem fiscaliza [as comunidades
terapêuticas] são as unidades das vigilâncias sanitárias locais, de
acordo com
os critérios estabelecidos pela Anvisa". Sobre os critérios para que
instituições desse tipo sejam conveniadas ao SUS, a assessoria disse que
"a partir do novo programa 'Crack, é Possível Vencer', elas terão que
aderir ao plano por meio de projetos que precisam atender às exigências
técnicas necessárias".
O professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim
Venâncio/Fiocruz, Marco Aurélio Soares, explica que as chamadas
comunidades
terapêuticas que existem atualmente, a maior parte delas criadas por
entidades
religiosas, não têm nenhuma relação com o conceito original. "O que
existe
no Brasil nem se aproxima da ideia verdadeira de comunidades
terapêuticas, que
foram pensadas pelo psiquiatra inglês Maxwell Jones como espaços
democráticos,
onde as pessoas ficam se quiserem, participam de assembléias, etc",
observa Marco Aurélio, que também coordena na EPSJV/Fiocruz o Curso de
Atualização Profissional em Atenção ao uso prejudicial de Álcool e
outras
Drogas, destinado a profissionais de saúde.
Drogas como uma questão de saúde
pública
O coordenador de Saúde Mental do Ministério da Saúde, Roberto
Tykanori,
explica a partir de quais diretrizes a política de enfrentamento ao
crack do
governo federal está sendo criada. "Como se trata hoje de um tema
bastante
polêmico, é fundamental, do ponto de vista ético-político, nos atermos
àquilo
que a Constituição nos garante. O
artigo 5º é uma referência fundamental no que tange a qualquer ação
na área da
educação, da saúde, da justiça ou da polícia. Em situações polêmicas ou
extremadas, há uma tendência a querer suprimir ou fazer vista grossa em
relação
à garantia dos direitos individuais", diz. Tykanori acrescenta que do
ponto de vista técnico, o Ministério fez uma projeção do tamanho do
problema
com o crack, embora existam poucas informações já disponíveis. "As
informações que temos não são muito consistentes, então, trabalhamos com
números projetados, estatísticas de outros países e dados da Organização
Mundial da Saúde (OMS). O princípio orientador da política de crack é
que as
pessoas vão depender de vários tipos de abordagem dependendo da situação
como
se encontram, então, adequaremos a oferta à variedade de necessidades.
Esse
principio é o que organiza hoje a rede de atenção aos usuários de crack e
outras drogas", complementa.
O consumo de drogas no país e as conseqüências que essa prática pode
trazer não são novidades, mas então, porque o crack virou o assunto do
momento?
"O crack de fato tem algumas características diferentes das outras
drogas.
É muito barato, muito portável e acessível, tem uma absorção
extremamente
rápida, mais rápida até do que as drogas injetáveis. É possível sentir
os
efeitos do crack em 7 a 10 segundos, enquanto as drogas injetáveis
demoram 30
segundos para provocar algum efeito", explica o pesquisador do Instituto
de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde da
Fundação
Oswaldo Cruz (Icict/Fiocruz), Francisco Inácio Bastos, que também é
médico e há
vários anos trabalha pesquisando o tema e atendendo usuários de drogas.
"E
tem outro aspecto que não tem nada a ver com a substância em si: pela
primeira
vez na história do país não há mais uma coincidência quase total entre
cenas de
uso abertas em locais públicos e as comunidades faveladas. O consumo se
dá hoje
em outros locais públicos que não são favelas. Isso despertou na mídia,
na
sociedade em geral, nos políticos, uma perplexidade que antes não
existia", analisa o pesquisador.
O médico coordena uma pesquisa sobre o perfil dos usuários e o
consumo
de crack em todo o país, desenvolvida pela Fiocruz e pelo Ministério da
Saúde
em parceria com a Secretaria Nacional de Políticas Sobre Drogas (Senad).
"Visitamos há pouco tempo uma cena de uso de crack e pela primeira vez
nós
encontramos pessoas que acamparam nesse local. Aqui pertinho da Fiocruz,
encontramos barracas, refresco, refrigerente, é como se esses usuários
tivessem
montado uma ocupação semi-permanente. Não existia isso antes, havia
cenas de
droga, mas não com essas características", fala, sobre a atual
visibilidade
do consumo de crack.
Francisco Inácio acredita que as políticas sobre drogas devem apostar
na
criação de pontes entre as comunidades e os locais de tratamento, já que
uma
grande dificuldade é a procura espontânea pelos serviços de saúde. "As
melhores
políticas no mundo inteiro, e isso não é nenhuma novidade, são as que
estabelecem essa ponte, porque muito dificilmente conseguimos que uma
pessoa
que está numa cena [de consumo de drogas] saia espontaneamente para
frequentar
um serviço regular. Obviamente, a pessoa que usa crack de uma forma
contínua se
vê as voltas com vários problemas de saúde, então, acaba indo mais para
as UPAS
[Unidades de Pronto-Atendimento], para buscar um tratamento emergencial
para
problemas respiratórios, odontológicos, do que para um Caps, quando
deveria ser
o contrário", observa. O pesquisador explica que, com isso, os serviços
de
emergência ficam sobrecarregados. "Isso não é um problema exclusivo do
crack, essa distorção de demandas de saúde no Brasil é histórica. A
pessoa está
com gripe e não consegue marcar consulta, então vai para uma emergência.
A
emergência no Brasil é tampão, ela atende praticamente tudo, e o crack
só veio
trazer mais gente, mais demandas e mais distorção", comenta.
Para Francisco, propostas como a dos consultórios de rua podem ser
uma
boa solução para estabelecer a ponte entre os usuários e os serviços de
saúde
adequados. De acordo com ele, um exemplo dessa ponte é a experiência do
Centro
de Saúde - Escola Germano Sinval Faria da Escola Nacional de Saúde
Pública
Sergio Arouca (CSEGSF/ENSP/Fiocruz), cujo fluxo de usuários de crack
melhorou
após a implementação de um consultório de rua e de outra unidade
trabalhando em
sintonia - a Clínica da Família Victor Valla (localizada no bairro de
Manguinhos, no entorno da Fiocruz) - ambos com atuação nas proximidades
das
cenas de consumo de drogas. "Esse exemplo está mostrando que o trabalho
pode funcionar bem se contarmos com equipes motivadas e bem treinadas. O
que
não pode acontecer é o que vinha sendo proposto antes. O cara é um
agente de
saúde que passou a vida toda trabalhando com saúde materno-infantil e
agora
passa a ter que lidar com o crack. É uma população e um recorte
demográfico
totalmente diferentes. Dessa forma não funciona", alerta.
Crack e exclusão
O professor do Departamento de Saúde da Família da Faculdade de
Medicina
da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Tarcísio Andrade, considera que
é um
equívoco abordar o uso do crack como uma questão específica, sob o risco
de
desvincular o problema do contexto em que está inserido. "Pensando na
perspectiva socioeconômica, nós temos inevitavelmente uma melhora das
condições
de vida e da renda do povo brasileiro, mas nós temos um segmento
populacional,
na faixa de 15 a 25 anos, ainda fora do mercado de trabalho e sem nível
educacional para assumir qualquer posição nesse mercado, porque não
tínhamos
até então nenhuma programa voltado para essa população. O erro da
política
atual é não enxergar esse aspecto", avalia.
Segundo Tarcísio, o grande contingente de usuários de crack,
sobretudo
homens jovens, vive uma vida sem perspectivas concretas, o que não pode
ser
desconsiderado. "Embora a mídia e a própria estrutura capitalista o
tempo
inteiro digam que tudo é possível, isso não é verdade. É como se fossem
chamados
para a festa e acabassem barrados no baile. Há essa falsa ideia de
igualdade e
essa população está excluída. É essa mesma população que constitui o
maior
contingente de pessoas que recorrem a práticas ilícitas para tocar a
vida
adiante, seja do ponto de vista subjetivo para ter visibilidade, para
ser visto
de alguma forma socialmente, seja do ponto de vista concreto da própria
sobrevivência", pontua.
Para o professor, outro equívoco é considerar que todos os usuários
de
crack têm o perfil de moradores de rua. Tarcísio trabalha há mais de 15
anos
com usuários de drogas e foi um dos pioneiros no país na implementação
de
políticas de redução de danos. O professor coordena hoje o programa de
extensão
da UFBA, Aliança de Redução de Danos Fátima Cavalcanti. "A população de
rua constitui a ponta do iceberg. O grande contingente que usa crack e
que mais
sofre com as consequências do uso de crack, não pelo viés da droga em
si, mas
pelo viés de ser uma prática ilícita, socialmente inaceitável, é de
jovens
negros, que morrem com 25 anos de idade. Essas pessoas têm casa,
familiares, e
vivem com um cerceamento de liberdade enorme, porque alguns bairros nas
grandes
cidades brasileiras são bairros divididos, sequer podem cruzar de um
lado pra
outro", define. O professor conta que participou recentemente de um
estudo
sobre os usuários de crack no Rio de Janeiro (RJ), Salvador (BA) e Macaé
(RJ),
cujos dados ainda estão sendo analisados. "Na realização dos grupos
focais, quando perguntávamos aos usuários moradores de rua o que eles
pensam da
vida para daqui um ano, eles respondiam: ‘eu espero que eu possa ter uma
casa,
é muito ruim viver na rua'. Quando fizemos essa pergunta para as pessoas
de
bairro, vários deles disseram: ‘eu não sei o que vai acontecer comigo
daqui um
ano porque muitos dos meus colegas já morreram'. Então, as perspectivas
são
piores e eu não tenho visto políticas mais consistentes dirigidas a essa
população. Precisamos de uma política pública imediata para dar suporte
social
a essas pessoas", afirma.
O coordenador de Saúde Mental do Ministério da Saúde concorda que o
problema do crack é muito mais complexo. Para ele, a discussão polêmica
sobre
para onde devem ir os usuários de crack deve ser um debate sobre o papel
dessas
pessoas na sociedade. "O desenvolvimento econômico está deixando para
trás
uma parcela significativa de brasileiros. Então, trata-se de um problema
sobre
que lugar na sociedade essas pessoas estão ocupando. Esse é um
enfrentamento
real que nós precisamos fazer, tornar nossas ações mais amplas, e, nesse
sentido, ações intersetoriais se tornarão cada vez mais importantes para
viabilizar lugares melhores para esses cidadãos que estão nessa condição
de
muita fragilidade e vulnerabilidade. Estamos tendo isso como aprendizado
nesse
período de construção da política", declara.
Além do estereótipo dos usuários de crack como moradores de rua,
Francisco Inácio acrescenta que é preciso ampliar a visão sobre o perfil
dos
consumidores da droga. "Nem todos os usuários fazem uso continuado de
crack especificamente. Eu tenho pacientes que fazem uso de crack,
interrompem e
passam um período usando cocaína cheirada e álcool, por exemplo.
Normalmente, a
imensa maioria é de poliusuários, como eles próprios se definem, X-tudo,
total-flex, eles mesmos inventam essas palavras. Então, igualar não é
correto", afirma. Segundo Francisco, atualmente, há também usuários de
crack de classe média, embora sejam minoria. "Obviamente, existe uma
concentração de pessoas que vêm de comunidades pobres, que já têm toda
uma vida
complicada por várias razões, e o crack veio a ser mais um problema na
vida
delas. Os ricos nunca chegaram até o ambulatório e provavelmente não vão
chegar, mas atendemos pessoas de classe média que falam bem, são
articuladas,
tiveram acesso à educação e mesmo assim estão usando crack", descreve.
Para Marco Aurélio, outro erro é associar o crack a uma série de
mazelas, como a vida na rua e a gravidez na adolescência. "Esses fatores
são causa do uso do crack, não consequência. Essa população
marginalizada de rua
cheirava cola e agora usa crack, que diminui a fome e a depressão e
mantém as
pessoas acordadas, e elas muitas vezes precisam ficar acordadas porque
estão
expostas a perigos. No Canadá, por exemplo, existem usuários eventuais
de
crack, como existem de cocaína no Brasil. Aqui, os usuários de crack
foram
associados à criminalidade", critica.
Consistência das políticas
Tarcísio alerta sobre a necessidade de controle dos recursos públicos
e
padronização dos serviços de atenção aos usuários de drogas. Segundo
ele, há
boas políticas, mas existe também muito desperdício de recursos. O
professor
concluiu recentemente um projeto de supervisão de 30 consultórios de rua
em
municípios de todos os estados do país. "Às vezes colocam todo o recurso
para comprar o veículo, aí falta recurso para contratar equipe. Por
outro lado,
há a desconexão entre a fonte financiadora, que é o governo federal, e a
utilização do recurso. Temos uma política de consultórios de rua, mas
quantos
estão efetivamente funcionando? Essas boas políticas precisam de um
acompanhamento melhor", destaca. De acordo com o MS, serão criados 216
novos consultórios de rua, que juntamente com os consultórios já
existentes
contabilizarão 308 serviços desse tipo.
Os Caps AD também serão incrementados com a nova política do
Ministério
da Saúde. Serão criados 41 novos Caps AD e outros 134 serão
qualificados. Para
Tarcísio, esse também é um serviço fundamental, embora seja necessária
uma
melhor definição do seu papel na rede de atenção à saúde. "É um
dispositivo extremamente importante sem a menor sombra de dúvidas, mas é
preciso que funcionem dentro da filosofia pela qual foram criados, como
um
dispositivo da atenção básica. É impossível que funcionem
descontextualizados
do programa de saúde da família, por exemplo. Se o Caps não está
vinculado a um
território, ele vira uma unidade de saúde em si mesma e ele não foi
concebido
dessa maneira", alerta. Segundo Tarcísio, novamente a questão gira em
torno da estruturação da atenção básica no país, da qual o bom
funcionamento
dos Caps e de outros serviços depende inteiramente. "E a atenção básica
no
país é extremamente falha, cidades como Salvador tem 15% de cobertura da
atenção básica. No Rio e São Paulo, a cobertura é de menos de 25%. E
outro
aspecto é que originalmente a atenção básica não inclui atenção ao uso
de
drogas. Se tivéssemos isso dentro da atenção básica e uma atenção básica
abrangente, não precisaríamos de políticas específicas. As políticas
específicas escondem esse aspecto", lamenta.
De acordo com Tykanori, todas as estruturas previstas no novo plano
de
enfrentamento ao crack estarão interligadas aos outros programas e ações
do MS.
Ele defende a existência de políticas específicas para a organização do
sistema
de saúde, mas garante que, na realidade, trata-se de uma única política.
"A rigor é uma única rede, mas estamos chamando as dimensões específicas
da rede também de redes - rede de Saúde Mental, rede Cegonha, rede de
Urgência
e Emergência. Se supõe, a partir disso, que o trabalho articulado e
sinérgico
entre diversos órgãos dá uma maior eficácia no cuidado com as pessoas.
As redes
não são separadas, ao contrário, é só por uma questão de lógica
organizativa é
que se pode olhar a rede Cegonha separadada rede de Saúde Mental, por
exemplo,
mas na prática elas são interligadas. Uma mulher grávida que usa crack é
parte
de ambas", diz.
A secretária nacional de Políticas Sobre Drogas, Paulina Duarte,
reafirma a necessidade de uma articulação maior entre os ministérios que
devem
tratar a questão das drogas. "Cada Ministério tem competências
regimentais
específicas, que limitam seu campo de atuação. Como questões
relacionadas às
drogas envolvem diferentes aspectos e contextos - como saúde,
assistência
social, educação, direitos humanos e segurança pública - todos os
ministérios
envolvidos com o tema precisam estar engajados para que o programa
cumpra suas
metas satisfatoriamente", disse, em entrevista realizada por e-mail.
Redução de danos
A atenção ao
uso de drogas no país foi lentamente mudando de perspectiva. Francisco
lembra
que a truculência do período da ditadura no tratamento da questão foi
abrindo
caminho para a saúde pública. "Na ditadura não tínhamos abordagem
democrática para nada e as drogas não seriam a única coisa que
abordaríamos
democraticamente, justamente o contrário. Essa legislação de droga
extremamente
repressiva foi parcialmente reformada pelo governo Fernando Henrique e
depois
mais profundamente no governo Lula. O Brasil hoje tem uma legislação
mais ou
menos moderna, embora com problemas. E nas décadas de 1980 e 1990
tivemos uma
fortíssima influência das políticas para AIDS nas políticas de drogas. O
que
foi extremamente importante porque a AIDS ajudou as políticas de drogas a
fazer
uma interface maior com a saúde pública", conta. O professor comenta que
o
programa de redução de danos na Bahia, coordenado por Tarcisio, na
década de
1990, foi o primeiro que conseguiu se manter e impedir que os seus
membros não
fossem presos.
Marco Aurélio explica que pela perspectiva da redução de danos, a
abstinência da droga é um fim e não o ponto de partida. Para o
professor, esse
deve ser o caminho perseguido pelas políticas sobre drogas, a partir de
instrumentos que já vinham sendo utilizados, como os consultórios de
rua.
"Na perspectiva da redução de danos, a equipe do consultório de rua
aborda
a população tentando criar vínculo e estabelecer uma relação de
confiança.
Aborda primeiro a partir de outros problemas de saúde, cuidado de um
ferimento,
por exemplo, fornecendo alimentos. Ensina-se a pessoa a passar protetor
labial
e a não usar lata para não se queimar, distribui-se cachimbos e
sugere-se que
se substitua o crack por maconha, por exemplo. E, uma vez chegando ao
problema
da droga, se o usuário aceitar um acompanhamento, a equipe o encaminha
para um
Caps AD". Tarcísio acrescenta que os programas de redução de danos
conseguem avanços significativos na saúde dos usuários de drogas.
"Dentro
do uso de drogas, há um espectro imenso de pessoas, desde aquelas que
fazem um
uso compatível com outras atividades, até outras com um uso muito
comprometido.
Então, se uma pessoa com um uso intenso de drogas, às vezes sob grande
risco,
passa a ter um consumo mais protegido, ou muda para uma droga menos
disfuncional do ponto de vista social, é um avanço fantástico. Se esse
indivíduo dá esse passo, ele pode dar passos mais adiante, e pode,
inclusive,
deixar de usar drogas. Isso é diferente de se dirigir ao indivíduo
exigindo
abstinência, porque seguramente a maioria deles não conseguirá cumprir",
explica.
Para Tarcísio, qualquer programa sobre drogas que funcione
verticalmente, na base da imposição, como uma internação compulsória,
está
fadado ao fracasso. "Se alguém respeita a limitação do usuário de droga e
começa a construir com ele uma outra possibilidade, a chance desse
indivíduo
reduzir o consumo ou mesmo parar de usar a droga é muito maior do que
quando se
impõe. A imposição destitui o outro da capacidade de decidir sobre si
mesmo. E
o que nos constitui sujeitos é a capacidade de decidir minimamente sobre
nossa
própria vida", ressalta.
O pesquisador lamenta que dos 250 programas de redução de danos que
já
existiram no Brasil, a maior parte deles, coordenados por universidades,
ONGs e
por alguns municípios, tenha sido desarticulada por falta de
financiamento. Ele
conta que o programa existente na Bahia é um dos poucos que se manteve
no país
e já chegou a fazer 35 mil atendimentos por ano. Tarcísio diz que o
Ministério
da Saúde, principal fonte financiadora dos projetos de redução de danos,
começou em 2003 a transferir a responsabilidade dos programas para os
estados e
municípios. Na opinião dele, a decisão de transferir foi acertada, o
problema
estava em quem mantinha a tecnologia da redução de danos, que eram
justamente
as universidades, as ONGs e o governo federal, o que ocasionou a
desestruturação dos programas quando eles passaram para as esferas
estaduais e
municipais. "Eu digo que perdemos o trem da história quando deixamos de
investir maciçamente nos programas de redução de danos como vínhamos
fazendo.
Há publicações mostrando a economia significativa de vidas humanas e de
recursos públicos que uma política de redução de danos é capaz de
causar",
diz Tarcísio. No caso de Salvador, a Secretaria Municipal de Saúde
financia o
programa desde 2006 e, atualmente, o governo estadual da Bahia está
financiando
um Caps ad em um território completamente constituído, ou seja, com
todos os
serviços básicos. O Caps ad funciona dentro da universidade e, além de
atender
a população, também será um espaço de aprendizado para profissionais que
trabalham com álcool e drogas.
Para Francisco Inácio, é preciso incrementar as políticas de redução
de
danos de forma que atendam a realidade atual. Ele aposta nas novas
tecnologias
como ferramentas que podem ser eficazes na prevenção. "Para essa nova
geração que é ligada à internet, não dá para fazer só a prevenção
tradicional
de conversa um a um, claro que essa conversa também é importante, mas eu
visito
as comunidades e vejo que todo mundo tem celular. Porque não fazer como
foi
feito na época da vacinação de influenza quando enviaram um SMS dizendo
que as
pessoas precisavam se vacinar de acordo com a faixa etária?
Provavelmente eles
vão atender muito mais facilmente a uma mensagem dessas do que uma
mensagem por
papel", sugere.
Embora boa parte dos programas de redução de danos tenha sido
desmantelada, conforme informa Tarcísio, o coordenador de Saúde Mental
do
Ministério da Saúde concorda que o conceito da redução de danos deve
guiar
todas as políticas de saúde no campo de álcool e drogas. "Culturalmente,
o
ser humano está sempre buscando interagir com substâncias que possam de
alguma
forma ocasionar mudanças em suas vivências. Essas tendências sempre
trazem
junto benefícios e malefícios. Então, não será abolida a relação do ser
humano
com essas substâncias. Por isso, a redução de danos é básica para lidar
nesse
campo. Talvez seja equivalente a um dos aforismas mais básicos da
medicina -
primum non nocere (em latim) -, que significa 'antes de tudo não fazer o
mal',
ou seja, antes de tudo preservar a vida e fazer com que a pessoa viva",
reforça.
Formação em álcool e drogas
"Eu sou médico, e durante meus seis anos de faculdade, não tive uma
única aula que falasse sobre manejo e abuso de drogas. Como eu segui
essa
carreira, só fui estudar esse tema durante a residência em psiquiatria.
Estou
falando de médicos, mas a situação é a mesma para qualquer profissional
de
saúde. E o problema das drogas existe, então ele irá aparecer nas UPAS
[Unidades de Pronto-Atendimento], nas emergências. Não é à toa que volta
e meia
morrem pessoas, inclusive artistas. E isso não ocorre apenas no Brasil",
diz Francisco Inácio. Para ele, a formação é um dos principais gargalos
na
atenção em álcool e drogas no país.
A Secretaria Nacional de Políticas Sobre Drogas (Senad) reconhece que
muitos cursos não têm a temática em seus currículos. Segundo a
secretária
Paulina Duarte, desde 2003, a Senad realiza cursos de capacitação para
profissionais de diversas áreas. "Em 2011, a Secretaria promoveu 13
cursos, sendo sete a distância e seis presenciais, somando quase 88 mil
profissionais capacitados. Entre eles, destaca-se o curso 'Supera-
Sistema para
Detecção do Uso Abusivo e Dependência de Substâncias Psicoativas:
encaminhamento, intervenção breve, reinserção social e acompanhamento'.
Também
em 2011, foram implantados em instituições públicas de ensino superior
49 pólos
de formação permanente para capacitação presencial contínua de
profissionais
efetivamente atuantes nas áreas da saúde, assistência social, justiça e
segurança pública, chamados Centros Regionais de Referência (CRR)",
informa.
Fonte: ADITAL
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