segunda-feira, 19 de setembro de 2011

A Institucionalização de Crianças e Adolescentes ao longo da história

Por: Pró-Menino
Silvia Losacco*




A preocupação com o grande número de bebês encontrados mortos durante a Idade Média, fez com que uma Irmandade de Caridade organizasse em um hospital em Roma um sistema de proteção à criança. Denominado "roda dos expostos" ou "roda dos enjeitados", este artefato de madeira era fixado no muro ou na janela do hospital aonde a criança recém-nascida, enjeitada ou fruto de uma relação inconveniente, era depositada. Ao girar o artefato o bebê era conduzido para dentro das dependências da irmandade, sem que a identidade de quem ali o colocasse fosse revelada.



Estes "filhos de ninguém" eram, muitas vezes, fruto de relações proibidas, filhos de moças pobres, ou mesmo crianças encontradas por eremitas que as recolhiam e as educavam até as colocarem na "roda". Por vezes as mães dos enjeitados deixavam alguns objetos identificáveis (fitinhas, pequenos bordados com monogramas, medalhinhas), a fim de, um dia mais tarde, as poderem identificar e recuperar. Quando atingiam a idade de aprendizagem, as crianças eram transferidas para a Casa Pia, uma instituição de acolhimento que as educava e preparava para a vida adulta.



As primeiras iniciativas de atendimento às crianças abandonadas no Brasil se deram, seguindo a tradição portuguesa, com a instalação da roda dos expostos nas Santas Casas de Misericórdia. Em princípio três: Salvador (1726), Rio de Janeiro (1738), Recife (1789) e ainda em São Paulo (1825), já no início do império. Outras rodas menores foram surgindo em outras cidades após este período.



Mais tarde no Brasil, já com a promulgação do 1º Código de Menores, as famílias destituídas de poder financeiro para a criação de sua prole tinham como ajuda do Estado a "internação" de seus filhos, tidos como órfãos ou abandonados.



A alteração legal da nomenclatura internação para abrigamento não levou à mudança de cultura daqueles que são os responsáveis legais por esse procedimento. O recolhimento de crianças em situação de rua já foi o principal instrumento de assistência à infância no Brasil.




A pesquisa realizada em 2004 pelo IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, seguindo as orientações do Comitê de Reordenamento da Rede Nacional de Abrigos para a Infância e Adolescência, demonstrou que a pobreza foi o motivo mais citado (24,2%) como causa para a institucionalização, contrariando o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) que estabelece a obrigatoriedade de inclusão da família em programas oficiais de auxílio quando pais ou responsáveis não conseguem cumprir com suas obrigações de proteção aos filhos por motivos de carência material.



Desafios


Todos os esforços governamentais ainda têm sido insuficientes para a divulgação, apropriação dos saberes, planejamentos e implantação de ações que efetivamente garantam os direitos de crianças e de adolescentes à boa convivência familiar e comunitária. Dentre outras ações de grande relevância, as iniciativas de programas como o de Família Acolhedora e os instrumentais legais como o Cadastro Único de Adoção e as Audiências Concentradas ainda não têm contribuído para a reversão da cultura vigente. Tampouco, as violências sexuais, físicas e psíquicas sofridas indistintamente por ambos os sexo, inclusive por aqueles que pertencentes às classes sociais mais abastadas, tem sido pauta de debates, de pesquisas e, até, da mídia.


Dentre vários desafios, dois chamam a atenção para o imediato enfrentamento: o reordenamento das instituições de acolhimento e a qualificação dos profissionais de atendimento à família e, conseqüentemente, à criança e ao adolescente em situação de vulnerabilidade pessoal e/ou social, em todas as áreas de atuação: segurança pública, conselho tutelar, justiça, assistência, etc.
 


Independente da qualificação formal de cada profissional, deverá compor, enquanto princípio valorativo, os momentos do atendimento: a qualidade do acolhimento, o respeito, a disponibilidade de escuta, a credibilidade dos relatos e, principalmente, a consideração pela dor vivida decorrente de um determinado episódio ou da trajetória de vida do adulto responsável e/ou da criança e do adolescente em questão.



Se, por um lado, o reordenamento institucional requer a elaboração e a implementação de um Plano Político-Pedagógico Institucional (PPPI); por outro lado, a formação profissional requer nova proposta.



O PPPI é um instrumental que traz em si uma visão de sociedade, de cidadania e de atitudes; “(...) instrumento de trabalho que mostra o que vai ser feito, quando, de que maneira, por quem, para chegar a que resultados. Explicita uma filosofia e harmoniza as diretrizes (...) com a realidade da instituição traduzindo sua autonomia e definindo seu compromisso (...)” (VEIGA, 2003a: 110).



Sua construção implica tomada de decisões, definição de intencionalidades e perfis profissionais, análise das condições reais e objetivas de trabalho, otimização de recursos humanos, físicos e financeiros, além de coordenar os esforços em direção a objetivos e compromissos futuros. Requer flexibilidade e autonomia na sua elaboração para que lhe seja conferida a sua legitimidade. É um processo que tem, em sua incompletude, a necessidade constante de avaliação que o impulsiona a superações.



Para manter-se vigente, precisa superar o caráter de um documento formal e constituir-se em mecanismo vivo de desenvolvimento e avaliação interativa permanente de seus princípios pela comunidade.



A instituição que o opera, a par das múltiplas contradições postas na sociedade atual, precisa situar-se de modo crítico e dialético, dialogando efetivamente com todos os setores da sociedade, a partir de um contexto local, incluído na problemática nacional, que, por sua vez, determina e é determinante de uma conjuntura global, de um lado, contribuindo para o desenvolvimento teórico-metodológico e, de outro, servindo a uma concepção radical e universal de cidadania.



É uma proposta de ação político-institucional e não um artefato técnico. Constitui o conjunto de diretrizes mais abrangentes que expressa a identidade da instituição, não sendo somente uma carta de intenções, tampouco uma exigência de ordem administrativa. Enquanto instrumento técnico-metodológico, visa ajudar os desafios do cotidiano de uma forma refletida, consciente, sistematizada e participativa.



Sua operacionalização é uma construção em processo permanente, pois tem como características: ser um processo participativo de decisões; preocupa-se em instaurar uma forma de organização de trabalho que desvele os conflitos e as contradições; deve explicitar princípios baseados na autonomia, na solidariedade e no estímulo participativo de todos no projeto comum e coletivo; conter opiniões de todos na direção de superar problemas no decorrer do trabalho; explicitar o compromisso com a formação do cidadão.


Tanto para a sua elaboração, quanto para a sua operacionalização e avaliação, há a necessidade do envolvimento dos atores como componentes individuais, do apoio institucional e das garantias legais postas no cenário nacional. É um documento legal e político que define a identidade e a missão da instituição, construído a partir de um elenco de valores de mundo dos atores que são encarregados por executá-lo.
 


Seus conjuntos de preposições definem: seus princípios, o funcionamento institucional, metas, prioridades, referências para o trabalho, e proposições. Explicita a visão do conjunto institucional numa perspectiva de futuro e de futuro próximo. Exprime as condições de trabalho, a natureza das relações hierárquicas e das estruturas organizacionais, os sistemas de avaliação e de controle dos resultados; as   políticas de gestão com pessoas, as estruturas, fundamentos, e práticas dos projetos particulares que compõem o todo.

Diversificadas e complexas deverão ser as formações daqueles que, desde o primeiro momento, atendem ao público em tela. A qualificação está atrelada às possibilidades de cada um dos profissionais; porém, também requer vontade política para a difusão dos saberes e instrumentais já construídos e uma reestruturação curricular para o nível superior de ensino atrelada à ousadia da elaboração de novas grades disciplinares e cursos que favoreçam a formação de profissionais com as competências necessárias para os enfrentamentos das diversidades das violências sofridas por crianças e adolescentes.

Nesse sentido, os saberes poderão, e deverão, ser colocados em prática por meio de ações articuladas que nos permitam rever as políticas institucionais, repensá-las e, se for o caso, reconstruí-las com o objetivo de alcançar um bem que tenha a dimensão do coletivo. Ações que nos possibilitam ver e intervir no tecido social, tecido que ao ser “aberto” revela suas tramas, seus nós, seus vazios. Ações que edificam uma sociedade que realmente tenha a criança e o adolescente como prioridade absoluta na promoção, na garantia e na defesa de todo e qualquer direito!


*Psicóloga psicodramatista, mestre em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo (1990) e doutorada em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2004).  Atua na área das políticas sociais e públicas para crianças, adolescentes, famílias e comunidade na formulação, coordenação, implantação, acompanhamento e avaliação de projetos, programas e políticas; e, na formação de profissionais que atuam na garantia dos direitos da criança e do adolescente. Dentre outros projetos para organismos internacionais e nacionais, foi consultora da SNPDCA - Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Criança e o Adolescente e UNFPA para a elaboração do Relatório da Convenção dos Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas. Foi Pesquisadora convidada do Programa de Estudos Pós-graduados em Serviço Social da PUC-SP para a Cocoordenação do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Criança e o Adolescente, de 2003 a 2009. Atualmente é coordenadora geral do Projeto "Convivência Familiar e Comunitária de Crianças e Adolescentes: Direitos Humanos e Justiça", financiado pela SDH/Conanda, com parceria da ABMP.


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