Elaine Patricia Cruz *
Repórter da Agência Brasil
Repórter da Agência Brasil
São Paulo – Adolescente agitado, Lucas** fica tímido ao mostrar suas
mãos. Em uma delas, há uma marca de infância. Mas não é uma marca que
nasceu com ele. Ela surgiu quando uma pessoa da família utilizou um
garfo quente para repreendê-lo e o queimou. “Até hoje eu tenho [a
marca]. Nas costas também, mas lá acho que não tenho mais as marcas”,
contou ele à Agência Brasil.
Lucas tem 13 anos. É filho adotivo e começou a apanhar “de cinta e
de fio” da mãe e do cunhado depois que o pai morreu. Em vários desses
momentos, fugiu para a casa de um amigo para se livrar das agressões.
“Tinha vezes em que eu dormia lá”, falou. “Se eu não lavasse a louça,
eles [a mãe e um cunhado] me batiam. Se eu não acordasse na hora certa,
eles me batiam. Aí eu fugi de casa e esse foi um dos motivos que me
levaram ao abrigo”, disse o adolescente, um entre milhares de exemplos
de vítimas de violência doméstica em todo o país.
Dados divulgados pela Secretaria de Direitos Humanos (SDH) da
Presidência da República mostraram que 77% das denúncias registradas por
meio do Disque 100, entre janeiro e novembro deste ano, são relativas à
violência contra crianças e adolescentes, o que corresponde a 120.344
casos relatados. Isso significa que, por mês, ocorreram 10.940
agressões, o que dá uma média de 364 denúncias por dia.
Já o Disque Denúncia 181, serviço criado em 2000 pelo Instituto São
Paulo contra a Violência e pelo governo paulista, por meio da Secretaria
de Segurança Pública, registrou 6.603 denúncias de maus-tratos contra
crianças entre janeiro e outubro deste ano em todo o estado, o que dá
uma média diária de 22 denúncias. O número é superior ao do mesmo
período do ano passado, quando foram registradas 6.028 denúncias.
Para Ariel de Castro Alves, presidente da Fundação Criança e
vice-presidente da Comissão Especial da Criança e do Adolescente da
Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), é difícil deduzir, por esses
números, se os casos de violência envolvendo crianças e adolescentes têm
crescido ou se as pessoas estão denunciando mais. “É difícil medir se
os casos estão aumentando. Na verdade, a sociedade está muito mais
alerta e mais atuante diante de casos de abusos e de violência contra
crianças e adolescentes. Isso é um fator muito positivo no país nos
últimos anos. As pessoas estão denunciando mais, sendo menos coniventes e
omissas”.
Nenhum dos dois serviços de denúncia contabiliza quantos desses
casos registrados referem-se especificamente à violência doméstica. Mas
sabe-se que o número é grande. “Hoje, temos muitas vítimas de violência
doméstica. De maus-tratos e de espancamento”, disse Maria Aparecida
Azevedo, que coordena as três casas de acolhimento da Fundação Criança,
uma organização municipal focada na defesa e na garantia de direitos de
crianças e adolescentes, que funciona em São Bernardo do Campo (SP).
“Os casos que chegam para nós são de abuso sexual, de criança
negligenciada e abandonada e de criança queimada e espancada. Essa é a
violência doméstica que está vindo para as casas de acolhimento”,
explicou Maria Aparecida.
A violência doméstica pode gerar traumas para as crianças e os
adolescentes, disse Alves. “Muitas vezes, elas [crianças e adolescentes]
são vítimas daquelas pessoas em quem confiam, que entendem ser as
pessoas que cuidam delas. Por isso, há dificuldade para assimilarem uma
situação desse tipo. Esse é o trauma maior. A pessoa que tinha que
proteger é a que acaba violando o direito dessas crianças e
adolescentes. Isso gera um trauma, uma desconfiança permanente com
relação aos adultos e dificuldade depois de convivência com outras
pessoas. Isso pode, muitas vezes, gerar também prejuízo no
desenvolvimento educacional”, disse, em entrevista à Agência Brasil.
Segundo Helen Vivili Santana Carmona, diretora técnica adjunta da
Fundação Criança, grande parte dessa violência contra crianças e
adolescentes tem como motivação principal o uso de álcool ou de drogas
pelos pais. “Temos um índice grande de pais com problemas psiquiátricos e
que fazem uso abusivo de álcool, que são geradores de violência”,
explicou.
Outro fator que contribui para a violência doméstica contra crianças
e adolescentes, disse Helen, é a ineficiência do Estado. “A violência
doméstica é gerada por uma ineficiência do Estado. A falta dessa rede de
atendimento e de serviços, que contemple a necessidade da família, faz
com que essa violência esteja aí, latente, nas famílias mais
vulneráveis”, acrescentou. Pela ineficiência do Estado, esclareceu
Helen, entende-se a falta de uma política habitacional adequada, falta
de políticas envolvendo a empregabilidade e também questões nas áreas de
saúde, educação e até atendimento psicológico precário ou inexistente.
“Essas famílias têm essa dificuldade financeira e isso acaba gerando
outros tipos de violência. A questão financeira é geradora das demais
violências. Já tivemos relatos de mães que tiveram seus filhos acolhidos
por conta da questão financeira e que acabaram agredindo o filho porque
ele pediu comida”, contou. “O Estado precisa olhar para essas
questões”.
Alves citou outro motivador da violência doméstica. “O que estimula a
violência é também a impunidade”, disse. Para ele, todos os órgãos que
trabalham com a questão envolvendo a defesa dos direitos da criança e do
adolescente, “desde a denúncia no Disque 100 [federal] ou no 181
[estadual], passando pelo Conselho Tutelar, pelas delegacias, pelas
promotorias ou varas especializadas” precisam funcionar e atuar de forma
integrada para combater a impunidade. Também é necessário, destacou,
criar, ampliar ou melhorar as redes de proteção social de atendimento
familiar para prevenir os casos de violência. A ideia seria, na sua
opinião, educar os pais para que possam educar seus filhos de maneira
adequada.
Lucas vive há cerca de um ano em um dos abrigos em São Bernardo do
Campo. Lá, ele e a família passam por acompanhamento médico,
psicológico, educacional e social. Alguns dos fins de semana Lucas passa
com a família. “Agora eu não apanho mais”, contou. A ideia do programa
desenvolvido na Fundação Criança é que Lucas volte a viver com a
família, agora mais preparada para educá-lo. “A nossa proposta é a de
reintegração familiar. Acolhimento não é lugar de criança. Ela deve
estar no seio familiar, senão biológico, da família extensiva ou até
comunitária”, acrescentou Helen.
* Colaborou Camila Maciel
** O nome do adolescente foi alterado.
** O nome do adolescente foi alterado.
Edição: Graça Adjuto
Fonte: Agência Brasil
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