Elaíze Farias
Jornalista A Crítica
Adital
Esquema aumentou e está mais
escancarado no município de São Gabriel da Cachoeira, mas não vem sendo alvo de
investigação e punição
São Gabriel da Cachoeira, 08 de
Setembro de 2012
Uma rede de pedofilia vem se
consolidando no município de São Gabriel da Cachoeira (a 858 quilômetros de
Manaus), no extremo norte do Amazonas, sem que os envolvidos sejam investigados
e muito menos punidos. As vítimas são meninas indígenas entre 10 e 16 anos de
idade. Pessoas vinculadas a instituições sociais são ameaçadas caso façam as denúncias
e as vítimas são coagidas a ficarem caladas.
Nessa semana algumas pessoas
ligadas a estas instituições aceitaram falar sobre os casos. Segundo elas, a
exploração sexual, antes velada, tem se tornado cada vez mais escancarada.
Respaldados pela falta de investigação, os exploradores sexuais e aliciadores
não temem ser punidos e continuam praticando o crime contra as meninas.
Em agosto passado, seis meninas
indígenas aceitaram prestar depoimento à representação da Polícia Federal em
São Gabriel da Cachoeira, município onde 90% de sua população é indígena. O
depoimento foi confirmado pelo representante da PF no município, Cláudio César.
O conteúdo das declarações,
contudo, não foi revelado à reportagem. Cláudio disse apenas que os depoimentos
farão parte de um relatório que ele enviará para a promotoria de São Gabriel da
Cachoeira e para a superintendência da PF, na próxima semana.
A delegada especializada em
crimes contra menor, idoso e violência doméstica de São Gabriel da Cachoeira,
Ivone Rocha, confirmou a existência dessa rede, mas alegou que o órgão não tem
estrutura para investigar os casos. A Polícia Civil tem apenas um investigador
no município. Ela também informou que as meninas vítimas da violência sexual
não costumam denunciar os suspeitos.
Comércio
O comércio do sexo com crianças e
adolescentes tem à frente um pequeno grupo de comerciantes "com dinheiro” que
se instalou há algum tempo no município e funcionários públicos. O alvo
preferido da exploração sexual são meninas virgens. Em muitas ocasiões, as
meninas também acabam sendo vítimas do tráfico de drogas.
"Essa rede de pedofilia, como a
gente chama, existe há muito tempo, mas aumenta a cada ano, a cada mês. Está se
alastrando. Está a olho nu. Antes, estes homens pegavam meninas de 14, 16 anos.
Agora, pegam meninas de 12, 11 e até 10 anos. São meninas de famílias muito
pobres que vêm de suas comunidades. Sem condições financeiras, elas acabam
sendo vítimas desses comerciantes”, disse uma conselheira tutelar que prefere
ficar no anonimato.
Embora a abordagem dessas garotas
ocorra em casas noturnas, bares e até portas de escola, o local que acabou se
tornando uma espécie de ponto de encontro é a rua Rui Barbosa, no bairro Miguel
Quirino, apontado como o mais pobre do município.
"Tem menina mais velha que leva
as irmãs mais novas. A menorzinha ganha apenas um biscoito, uma fruta. A maior
ganha uns R$ 50. Soubemos de casos horríveis, como a menina que é levada para
cinco, seis pessoas”, disse ela.
Descaso
A prática da exploração sexual de
menores não é recente e já foi denunciada em outras ocasiões, segundo a
conselheira. "As pessoas sabem que existem. Já denunciamos ao Ministério
Público, ao Fórum de Justiça, mas não passa disso. Deixamos até de ir à Polícia
Civil porque nada acontece ali. Além do mais, as meninas e as famílias ficam
com medo de denunciar. A cidade é muito pequena”, disse a conselheira, ela
própria bastante receosa em dar esta entrevista por temer a fúria da rede que
pratica a exploração sexual.
A presidente do Conselho
Municipal da Criança e do Adolescente (CMDCA), irmã Justina Zanato, que
acompanha algumas meninas envolvidas nesta rede, disse que já ouviu uma criança
de 10 anos dizer que os homens oferecem produtos como iogurte, chocolate e
frutas como pêra e uva.
Medo
Irmã Justina diz que tentativas
de denúncias esbarram no receio das autoridades públicas em investigar os
casos. "A maioria dessas crianças e jovens entra nessa rede por falta de algum
incentivo maior dentro da família ou por fome mesmo. Mas quando a gente
denuncia, parece que todos têm medo. É como se alguém estivesse freando as
investigações e a punição”, contou.
Medo de denunciar, omissão das
autoridades públicas e ameaças explícitas são as principais causas da
perpetuação e do crescimento da prática de exploração sexual, segundo uma
psicóloga que atua em São Gabriel da Cachoeira e que acompanha estes casos há
alguns anos.
"Todo mundo sabe quem são as
pessoas. E são pessoas poderosas. Quando se faz uma tentativa de denunciar,
acontecem as ameaças”, diz ela.
A psicóloga fez uma pesquisa que
traçou o perfil das meninas vítimas da exploração. São, na maioria, garotas
indígenas, pobres e vulneráveis socialmente que vêm das aldeias em busca de
melhores condições de vida. Os praticantes são em geral homens maduros,
comerciantes "estabelecidos na cidade” que raramente vão em festas e que,
aparentemente, possuem uma conduta ilibada.
Ação
Uma funcionária da Secretaria
Estadual de Povos Indígenas (Seind), indígena da etnia Baré, nascida no
município de São Gabriel da Cachoeira e que também teme ter seu nome divulgado,
confirmou a existência desta rede e do crescimento dela. Afirmou ainda que uma
tentativa de discutir o assunto foi feita há algum tempo, mas nenhuma ação
efetiva foi adiante.
"A gente sabe que existe, mas
precisa de provas consistentes. Deveria haver uma ação conjunta entre a Polícia
Civil, a Polícia Federal, o Conselho Tutelar e o Ministério Público Federal. A
Funai vai de mal a pior, a lei deixa de fazer a parte dela. E ninguém é
punido”, disse a indígena.
Falta estrutura
A delegada especializada em
crimes contra criança e adolescente, idoso e violência doméstica de São Gabriel
da Cachoeira, Ivone Rocha, disse que "sim, existe” uma rede de pedofilia
naquele município, mas que é preciso a população se "conscientizar” e começar a
denunciar a prática.
Questionada se a Polícia Civil
poderia, a partir de denúncias já realizadas, e iniciar uma investigação mais
aprofundada, ela afirmou que a instituição sofre com falta de estrutura para
tal ação.
"Estou lá há um ano. As meninas
não estão dispostas a denunciar. Muitas vezes inocentam o cidadão. Negam tudo.
Mas algumas denúncias já estão sendo sim apuradas, são casos mais recentes”,
disse.
Conforme Ivone, além dela há
apenas um policial civil para fazer o trabalho de investigação na cidade. "A
gente não tem como sair procurando e intimando as pessoas. Antes eu fazia
ronda. Havia quatro policiais civis e dois escrivães. Hoje, tenho apenas um
investigador e um escrivão. Por isso que é preciso que as pessoas denunciem”,
disse.
Miséria
O presidente Federação das
Organizações Indígenas do Alto Rio Negro (Foirn), Abrahão França, indígena da
etnia Baré, afirmou que, de fato, existe uma equipe que comanda essa situação.
"É o pessoal do comércio. O pior
é que todos sabem o nome, sabem quem são; a própria polícia sabe disso. Mas
fica no descaso. Já ouvi dizer que existe até tabela. Se for virgem, vale
tanto. A gente sabe que acontece esta situação, mas nunca avançou para
denunciar. Isso até o momento. Mas o procurador do Ministério Público Federal
(MPF) está aqui esta semana em São Gabriel da Cachoeira e vamos discutir”,
disse.
França afirmou que nos últimos
anos este problema se agravou. Um dos motivos é que um 'parente' indígena
ganhou a eleição e trouxe muitas expectativas para os que moram no interior
distante.
"Muita gente veio para a cidade
achando que teria emprego, mas não tem. Quando chega na cidade não tem o que
fazer, não tem mais roça e não tem onde morar. Precisa comer, precisa vestir e
não tem onde buscar o sustento. Aí aparecem esses homens que comandam e fazem
isso”, afirmou.
Indígena
Localizado à margem do rio Negro,
São Gabriel da Cachoeira é considerado o município mais indígena do Brasil. Sua
região é habitada por mais de 22 etnias diferentes.
No município, além do português,
outras três línguas são consideradas oficiais: tukano, nheegantu e baniwa. Sua
localização geográfica é considerada estratégica, pois faz fronteira com a Colômbia,
a Venezuela e o Peru. A área também é rica em minérios, como ouro e nióbio.
Estupro
Um caso de violência sexual
contra menores que chocou o conselho tutelar de São Gabriel da Cachoeira é o de
uma menina indígena de 13 anos que foi estuprada no dia 8 de junho deste ano
por um homem identificado com Léo. A menina, de etnia Tukano e Baré, que está
grávida, tem um grau menor de retardo mental.
No início de agosto, ela esteve
em Manaus para fazer ultrassom (não existe este serviço em São Gabriel) e sua
mãe aproveitou para fazer um boletim de ocorrência na Delegacia Especializada
de Proteção à Criança e ao Adolescente (DEPCA).
Pelo relato, a menina estava indo
para a escola quando foi abordada por um motorista de táxi lotação, que a
estuprou em um ramal. Ela já voltou ao município e o caso foi encaminhado para
a Delegacia do Interior, segundo informações da DEPCA.
Sobre este caso, a delegada Ivone
Rocha afirmou que até o último dia 21 de agosto, quando estava no município,
ainda não tinha recebido o boletim para dar encaminhamento às investigações e
pedir a prisão preventiva do suspeito. Ivone está em Manaus, de licença médica,
e retorna para São Gabriel da Cachoeira na próxima semana.
Legislação
A legislação que pune abuso e
exploração sexual de crianças e adolescentes encontra-se na Constituição
Federal, no Código Penal e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Na Constituição, encontra-se no
artigo 227, parágrafo 4º. "A lei punirá severamente o abuso, a violência e a
exploração sexual da criança e do adolescente”.
No ECA, os tipos de penas estão
mais detalhadas. Elas são aplicadas conforme a gravidade do crime.
No Código Penal, abuso, violência
e exploração sexual de crianças e adolescentes são enquadrados
penalmente como corrupção de menores (art. 218) e atentado violento ao pudor
(art.214 ), caracterizado por violência física ou grave ameaça.
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