Por Vilson Vieira Junior em 13/03/2012 na edição 685
Em maio de 2009, a pequena Maisa, à época com apenas seis anos de
idade, protagonizou cenas constrangedoras ao lado do apresentador e
empresário Silvio Santos no quadro “Pergunte pra Maisa”. O palco foi um
programa dominical que leva o nome do “homem do baú”, no SBT. Numa das
cenas, que foi ar no dia 10 daquele mês, ele provocou choro e muitos
gritos na menina ao levar um garoto com o rosto pintado de monstro.
Momentos antes, ela havia contado ao apresentador que ficou com medo ao
vê-lo no camarim. Todavia, o dono do SBT quis fazer um teste e o chamou
ao palco. Após ver o “menino-monstro” ao seu lado, Maisa, em desespero e
aos prantos, começou a correr diante das câmeras acompanhada pelas
gargalhadas sarcásticas de Silvio Santos.
Noutra ocasião, exibida uma semana depois, Maisa ficou nervosa com as
provocações do apresentador pelo que havia acontecido no programa
anterior. Ela deixou o palco correndo, bateu com a cabeça em uma câmera e
chorou reclamando de dores com a mãe. Não bastasse aquele absurdo,
Silvio Santos, em coro com o auditório, cantarolou: “Medrosa, medrosa,
medrosa...” As duas cenas lamentáveis saíram da TV para virar febre na
internet e logo ganharam as páginas de grandes jornais.
Resultado: a Vara da Infância e da Juventude da comarca de Osasco –
cidade onde estão sediados os estúdios do SBT –, a pedido do Ministério
Público Estadual, cassou a licença que permitia a participação da menina
no programa. Essa longa introdução é para mostrar que fatos como esses
envolvendo crianças não são isolados e, com frequência cada vez mais
preocupante, invadem os lares de milhões de brasileiros. E o mais
recente aconteceu no programa Raul Gil, no dia 3 de março deste
ano, também no SBT.
Direitos da criança
Velho conhecido em apresentar calouros infantis para alavancar a
audiência, Raul Gil comanda aos sábados o quadro “Eu e as Crianças”.
Nele, as crianças interagem com o apresentador, cantam, dançam e contam
piadas. Tudo em clima de muita diversão. Mas uma cena chamou a atenção
por lembrar o ocorrido com Maisa há quase três anos. Desta vez, a vítima
da disputa sem limites pela audiência na TV aberta foi a pequena
Manuela Munhoz, que aparenta ter apenas quatro ou cinco anos de idade,
embora seja bem conhecida do público que assiste ao programa.
Ao ser provocada pelo apresentador, que a interrompia voluntariamente
quando ela tentava anunciar a próxima criança, começou a chorar,
pedindo: “Por favor, para de brincar comigo, vovô Raul!” Como ele não
atendeu aos pedidos da menina, ela disse: “Vovô Raul, eu já falei pra
parar de brincar comigo!” E soluçava compulsivamente, sendo consolada
por duas colegas que tinham acabado de chegar ao palco. O apresentador
tentava minimizar o sofrimento da pequena caloura entoando frases que
rimavam com o nome dela. Mas ainda chorando muito e com a voz embargada,
Manuela teve que falar um texto decorado, um slogan que promovia o
apresentador e a emissora na qual se apresentava.
Para muitos, tal episódio não passou de mais uma entre tantas
estratégias já empregadas na TV para entreter o público, em sua grande
maioria tão carente de diversão e lazer nos fins de semana. No entanto,
crianças estão no centro desses fatos inaceitáveis e de mau gosto.
Crianças que, como todas as outras, ao invés de serem objeto de
exploração e chacota, merecem total proteção e respeito quanto à sua
integridade física, moral e psíquica. É o que determina o Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA), mas que ainda parece desconhecido
por aqueles que fazem televisão no Brasil.
Liberdade, respeito e dignidade
Vale sublinhar que o Estatuto motivou a ação do Ministério Público
Estadual de São Paulo contra o Sistema Brasileiro de Televisão (SBT), em
2009, no caso Maisa. Sendo assim, não custa nada lembrá-los o que
determina o ECA em seus artigos 4º, 5º, 15, 17 e 18, com destaque para
os três últimos:
Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do
poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos
direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao
esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao
respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
Art. 5º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e
opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão,
aos seus direitos fundamentais.
Art. 15. A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito
e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e
como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na
Constituição e nas leis.
Art. 17. O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da
integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente,
abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos
valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais.
Art. 18. É dever de todos velar pela dignidade da criança e do
adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento,
aterrorizante, vexatório ou constrangedor.
Desafio à democratização da mídia
Ao serem analisados à luz da legislação, casos como os de Maisa e
Manuela só vêm confirmar a forma criminosa com que a TV aberta comercial
tem abordado a criança nos últimos tempos e refletem a inoperância do
Ministério das Comunicações na fiscalização do conteúdo veiculado pelas
concessionárias de televisão. Estas, além de não dedicarem o devido
espaço ao público infantil a partir de conteúdos educativos, de exibirem
em qualquer horário programas inadequados (burlando a Classificação
Indicativa) e de abusarem da publicidade direcionada a esse público,
prestam um enorme desserviço ao expor crianças em situações
constrangedoras e humilhantes em programas de auditório.
Em suma, o que aconteceu deve ser visto como um atentado às crianças de
todo o país, além de colocar em xeque, mais uma vez, o cumprimento de
obrigações legais e constitucionais por parte das emissoras de
televisão. Eis aí mais um desafio para os que defendem a democratização
da mídia no Brasil: preservar os direitos de crianças e adolescentes nos
meios de comunicação e reivindicar políticas de conteúdo que respeitem
sua condição de sujeitos em plena formação de valores éticos, sociais e
intelectuais.
***
[Vilson Vieira Junior é jornalista, Serra, ES]
Fonte: Observatório da Imprensa
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