No último dia 13 de agosto, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) publicou a Súmula 492, a qual determina que "o
ato infracional análogo ao tráfico de drogas, por si só, não conduz
obrigatoriamente à imposição de medida socioeducativa de internação do
adolescente."
Claramente
editada com o intuito de dar cumprimento às disposições do ECA (Lei
8069/90), a Súmula do STJ busca coibir prática corrente em nosso
Judiciário mais conservador, qual seja aplicar ao adolescente em
conflito com a lei a medida socioeducativa mais severa em razão de ato
infracional que seria alvo de medida mais branda, quando aplicável. Vale
dizer: costumeiramente, o Judiciário vinha decidindo pela internação de
adolescentes pela prática de tráfico, quando o ECA (art. 122) definiu
claramente as hipóteses em que o adolescente deverá cumprir medida
socioeducativa privativa de liberdade, como a internação. São elas: 1.
quando se tratar de ato infracional cometido mediante grave ameaça ou
violência a pessoa; 2. por reiteração no cometimento de outras infrações
graves; 3. por descumprimento reiterado e injustificável da medida
anteriormente imposta. Claro está que o adolescente levado à internação
pela prática de tráfico, sem anterior ato infracional, é desautorizada
por lei.
Vale
sempre lembrar que a medida socioeducativa de internação, nos termos do
art. 121 do ECA, deve ser adotada EXCEPCIONALMENTE e com a BREVIDADE
recomendável, em respeito à condição peculiar do adolescente enquanto
pessoa em desenvolvimento.
Mesmo
assim, surpreendentemente, vozes da comunidade jurídica se levantam
contra a Súmula 492, alegando que ela é uma porta aberta para o aumento
do tráfico.
Ora,
parece claro que o tráfico é muito maior que os adolescentes. Não é o
adolescente que produz a droga, que entra com ela no País, que a
distribui nacionalmente ou que faz a gestão de uma das maiores
indústrias do mundo. Não é o adolescente que corrompe as instituições do
Estado para impor o seu negócio. Afinal quem mantém essa indústria?
Quem são os consumidores que mantêm esse mercado vivo? Quais são as
políticas públicas para tratar essas situações? Esse é o problema que
garante a continuidade e expansão do tráfico.
Polêmicas
à parte, interessa-nos aqui propor o debate em torno das causas que
levam os adolescentes ao tráfico. Obviamente, o problema é multicausal e
merece tratamento em diferentes dimensões.
Comumente,
afirma-se que o adolescente busca no tráfico garantir a manutenção do
próprio vício ou dinheiro para acessar bens de consumo, como tantos
outros adolescentes, alvos do poder da mídia em uma sociedade onde o
parecer e o ter se impõem ao ser.
A
essas hipóteses, juntamos uma terceira. O adolescente que trafica, como
qualquer outro jovem, busca acolhimento do grupo, busca pertencer a
algo que o identifique. Ele quer ser diferente de todos, mas igual a seu
grupo. Ele deseja, dentro desse grupo, o poder, ou os símbolos de poder
que esse grupo reconhece. Ele deseja subir no negócio do tráfico; ele
cobiça a menina mais desejada de sua comunidade, que valoriza o cara mais poderoso, mais temido; ele deseja orgulhar-se de si mesmo, ainda que seja pela prática de crimes. Ele deseja Poder.
Desde
cedo, esse mesmo adolescente conviveu com o abandono, a exclusão, a
violência. Desde cedo, foi privado da segurança de uma moradia adequada,
de alimentação, saúde, saneamento, educação com qualidade, lazer,
respeito, oportunidade, amor, enfim, daquilo que pode produzir uma
pessoa emocionalmente sadia. Algum cínico dirá: mas há aqueles que
convivem com tudo isso e não optam pelo crime. É verdade. Mas esses são
heróis, sobreviventes. O mundo não é feito de heróis, mas de pessoas
normais, frágeis, que muitas vezes precisam se ancorar no grupo, ainda
que ele não seja uma Congregação Mariana.
O
atendimento socioeducativo no Brasil não pode se fundar na eterna
construção de mais centros de internação para encarcerar mais e mais
adolescentes com base em uma justiça vingativa e punitiva, que não
recupera ninguém. Por mais que haja setores da sociedade que gostariam
de ver os adolescentes em conflito com a lei encarcerados até a vida
adulta, ou mesmo mortos, enfim, longe de seus olhos, o Estado, por meio
de seus agentes e instituições, não se pode mover pelo irracionalismo do
clamor popular para agredir a lei e os direitos humanos.
Propalar a ideia de que os 42,7%
de adolescentes internos de São Paulo por tráfico serão imediatamente
postos em liberdade e sairão às ruas para praticar novos atos
infracionais ou crimes é irresponsável e um ato de terrorismo social que
só acirra a intolerância e nada contribui para o debate de tema tão
sério.
O
ECA, apesar de seus 22 anos, ainda não se efetivou plenamente. Em
relação às medidas socioeducativas, esse distanciamento é ainda maior,
como comprovam os relatórios produzidos pelo Conselho Nacional de
Justiça, a partir de visitas realizadas aos centros de internação de
adolescentes em todo o País, ou os meios de comunicação de massa, como
recentemente vimos serem tratados os meninos internos nas instituições
de vários estados brasileiros através da tela da Rede Globo.
O
que dizer sobre o descumprimento a uma lei que possui 22 anos de
existência? Até quando as autoridades responsáveis por esse adolescente
poderão responder que estão se adequando à lei? Por que aceitamos com
tanta naturalidade o descumprimento à lei que assegura direitos a esses
adolescentes e somos implacáveis quando a situação é inversa?
Lamentavelmente,
para fazermos cumprir uma lei no Brasil, muitas vezes outra é
necessária. Por isso, a recente lei do Sinase (Lei 12594/2012).
Posições conservadoras e em dissonância com a lei não contribuem para a efetivação dos direitos da infância e juventude.
Marcelo
C. A. Rocha (Formado em Direito pela USP e especializado em Gestão
Pública e Relações Internacionais; é Relações Institucionais da Ação
Popular Brasil, organização cuja missão é o controle social dos atos do
Estado)
marcelo.acaopopularbr@gmail.com
Fonte: Pró-Menino
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